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A PSICOLOGIA DO VAGABUNDO: RESILIÊNCIA E SENTIDO DA VIDA
NA OBRA DE CHARLES CHAPLIN


Hallyson Alves Bezerra

INTRODUÇÃO

É possível encontrar um sentido em meio à dor e ao sofrimento? Mesmo diante dos acontecimentos negativos da vida, podese ter uma visão positiva da mesma? Como o exemplo de Charles Chaplin pode ser considerado como resiliência, para aquele que sofre?
Nascido na Inglaterra, no final do século XIX, Charles Spencer Chaplin teve uma infância pobre e enfrentou a fome, ao lado da mãe - em constante processo de loucura -, e o irmão mais velho, Sydney. Tornou-se, na vida adulta, o principal ícone do cinema de sua época. Apesar de toda dor e sofrimento vivenciado em tenra idade, Chaplin conseguiu superar as aflições do mundo difícil que vivenciou, para atingir os pícaros da glória, através da grande tela em preto e branco. Tornou-se o primeiro milionário do cinema e, até hoje, é aclamado por profissionais e admiradores da sétima arte, uma vez que sua estética influenciou (e influencia) muitos cineastas da contemporaneidade.
A vida e obra de Charles Chaplin é a principal fonte de inspiração para este trabalho, uma vez que, consultando a sua biografia, foi possível perceber que, a despeito de todas as dificuldades que encontrou pelo caminho pessoal e profissional, ele conseguiu transformar dor em sorriso, tristeza em alegria, lágrimas em gargalhadas, através de um personagem simples, batizado por ele mesmo como “O Vagabundo” (The Tramp), estimulando bilhões de pessoas a sorrirem, acompanhando as aventuras mais engraçadas da simpática figura que, como ele, não nasceu em berço de ouro, mas consegue traduzir as dificuldades em oportunidades.
A obra chapliniana, segundo Sanches (2012), enfatiza as angústias do homem moderno, sendo parte, também, as suas próprias angústias. Essa capacidade de superação, observada em sua vida pessoal e refletida no seu personagem alter ego, é nomeada de resiliência. Sendo assim, o objetivo deste trabalho é realizar uma discussão acerca de como a capacidade de resiliência de Charles Chaplin influenciou a sua obra artística, analisando a psicologia do personagem mais famoso, o vagabundo, e as influências da sua vida pessoal na construção deste personagem.
O termo resiliência foi cunhado na física, que significa a capacidade de alguns corpos de retornarem ao seu estado original, mesmo sendo submetidos a vários tipos de impactos, comprovando a resistência do material. Nas ciências sociais, o termo foi interpretado como a capacidade de uma pessoa, sistema ou organização tem para resistir a situações difíceis (Garcia cita Kotliarenco, Caceres, Fontecilla, 1997). De acordo com Machado (2009), o estudo da resiliência é relativamente recente e foi dada uma maior atenção a esse conceito na década de 1970, tendo na década de 1990 uma maior produção por parte de alguns pesquisadores.
Na Logoterapia, abordagem psicológica fundada pelo neurologista e psiquiatra vienense Viktor Emil Frankl, a resiliência encontra-se evidenciada no corpo teórico, sendo um dos mecanismos para a busca de sentido. Para a Logoterapia, todo ser humano é revestido de uma vontade de sentido, ou seja, todo mundo – sem exceção, busca um sentido para a sua vida, porque é da essência humana querer obter êxito nas mais diversas áreas de sua vida. Entretanto, obter sucesso não deve ser a causa primeira, objetivando encontrar a felicidade a todo custo, pois é justamente a “busca da felicidade” que frustra sua obtenção (Frankl, 2011, p.48).
Quando o indivíduo encontra-se ausente de sentido, aí se instala o vácuo existencial, que deve ser preenchido justamente por esse sentido. Em resumo, o vácuo existencial é a falta de sentido, não porque não exista, mas porque ele ainda não o encontrou, pois “a vida nunca cessa de ter um sentido” (Frankl, 2011, p.9). A logoterapia concebe o ser humano numa perspectiva biopsicoespiritual, sendo a dimensão espiritual (ou noética) aquela em que o homem desenvolve a possibilidade de realização de valores em qualquer situação de sua vida. É a partir dos conceitos logoterapêuticos do sentido do sofrimento, da capacidade de autodistanciamento ante as adversidades da vida e da autotranscendência em que a resiliência encontra seus fundamentos.

CHARLIE CHAPLIN: UMA VIDA RESILIENTE

Chapéu-coco, bigode, colete apertado, calças largas, sapatos grandes e bengala. Um andar desajeitado e uma ternura no olhar. Em qualquer lugar do planeta, hoje, descrever essas características e não se lembrar de Charles Chaplin é quase impossível, mesmo não tendo assistido a nenhum de seus filmes. O personagem chamado de vagabundo, ou The Tramp, em inglês, é emblemático, tornando Charles Chaplin conhecido em todo o mundo. Foi um fenômeno nos primeiros tempos do cinema e revolucionou a forma de se conceber essa arte.
Entretanto, antes de chegar aos pícaros da glória, antes dos seus 30 anos de idade, Charles Spencer Chaplin passou por uma difícil e triste infância e adolescência. O filme da sua vida passou longe de ser uma comédia e não fez o pequeno Charlie sorrir, assim como o fazem aqueles que assistem aos seus mais de oitenta filmes em película. (Figura 1)


INFÂNCIA E JUVENTUDE

No dia 16 de abril de 1889, na periferia da Londres vitoriana, nascia o filho do senhor Charles Chaplin e Hannah Harriet Hill, sendo batizado de Charles Spencer Chaplin Jr. Seus pais eram artistas de considerável renome, nos palcos de casas de espetáculos, conhecidas como Valdeville ou Teatro de Variedades. Lá havia diversas formas de arte, sobretudo a música e interpretação teatral.
Quando ainda era criança, testemunhou a separação dos pais. O senhor Charles Chaplin (pai) tinha muitos problemas com a bebida. Segundo David Robinson (2011), biógrafo de Charles Chaplin, o pai deste foi vítima de uma cultura estabelecida no teatro de variedades, que é a do alcoolismo: “Quando não estavam no palco, esperava-se que os artistas se misturassem ao público nos bares, encorajando o convívio alegre e o consumo...” (ROBINSON, 2011, p.17). O Senhor Chaplin deixou a ex-esposa sozinha, com os dois filhos: Sydney (que era fruto de uma relação de Hannah com outro homem, antes de casar-se com ele) e o pequeno Charles Chaplin Jr.
Tendo pais artistas, não foi difícil para Charlie ser influenciado pelo gosto artístico, sobretudo por ter acompanhado a mãe diversas vezes, nos ensaios de espetáculos que esta realizava. Hannah, que tinha o nome artístico de Lily Harley, era uma mãe devotada, apaixonada e protetora. Era calma e tinha uma voz doce. Chaplin certa vez comentou que ela adorava a companhia dos filhos e apreciava os momentos do café da manhã, regrados a muitas risadas e brincadeiras. Ele lembrava-se de um episódio marcante, quando estivera doente, e de cama, e sua mãe se pusera próxima à janela do pequeno sobrado onde moravam, começando a imitar as pessoas que passavam, com um talento que encantava o pequeno Charlie. Em seguida, descrevia perfeitamente o cenário que se apresentava do lado de fora da casa, para que o filho, incapacitado de sair à rua para brincar, se sentisse melhor. Com a separação traumática e tendo o terceiro filho (de outra relação) sido levado embora de sua vida, pelo pai biológico deste, a saúde de Hannah começou a apresentar uma ascendente fragilidade.
Sem trabalho, começou a viver situações difíceis com seus dois filhos. Quando finalmente conseguiu um contrato para um espetáculo, ela não suportou a pressão e não conseguiu cantar para um público, pouco interessado em seus dotes de cantora. Desolada, “Lily” sai do palco aos prantos e seria essa uma noite desastrosa, se o pequeno Charlie (que sabia a letra da música de cor, pois havia acompanhado a mãe em todos os ensaios) não tivesse ocupado o palco naquele momento e se pusesse a cantar, para deleite do público, que aplaudia e jogava moedas em sua direção. Segundo Chaplin descrevera em sua autobiografia, essa noite foi marcada como sua estreia artística, na medida em que também marcou o fim da carreira de Lily Harley nos palcos.
Isso abalaria profundamente a saúde física e mental da mãe de Charles Chaplin. Tendo vivido os abalos da perda do marido, do filho e do emprego, provavelmente Hannah deva ter sentido um vazio existencial, por não achar um motivo para que viver. Ver a mãe mergulhar numa depressão profunda, certamente deixou marcas na estrutura psicológica de Charles Chaplin, vivenciadas ao longo da sua vida, pois havia uma profunda admiração e aproximação por ela:

“Parece-me que minha mãe foi a mulher mais esplêndida que conheci... Conheci muitas pessoas andando pelo mundo, mas nunca uma mulher mais refinada que minha mãe. Se alcancei alguma coisa na vida, devo isso a ela.” (Chaplin, 1964).

Na medida em que as visitas ao hospital ficavam mais frequentes para Hannah, sendo a principal queixa as fortes dores de cabeça, Sydney e Chaplin são separados e passam a viver em abrigos londrinos, para crianças carentes. Amparados pela “Lei dos Pobres”, os dois irmãos que ora estavam juntos, ora separados, experimentaram a dura realidade de conviver com milhares de outras crianças, também sem pais, sob o rígido sistema que vigorava nas instituições de caridade. Sem amor, sem carinho e com pouca atenção, eles poderiam facilmente perder as esperanças de um dia voltarem a ter um lar.
O processo de ida e vinda ao hospital se repetiu durante algum tempo e a vida dos jovens se intercalava entre ter uma mãe e um lar e voltar para a instituição de crianças carentes. Com os filhos em processo de adolescência, e suas crises piorando, Hannah finalmente foi internada, definitivamente, em um hospital, com diagnóstico de loucura. A essa altura, Sydney encontrava-se trabalhando em um navio, e Charlie, para não voltar ao asilo de menores, mentiu para as autoridades, dizendo que se encontrava com uma tia. Assim, Charlie Chaplin passou a viver sozinho, tentando encontrar trabalho nas ruas e vivendo situações desesperadoras de fome e frio. Ainda assim, os irmãos procuravam superar essa situação de alguma forma e a união de ambos foi essencial para que sobrevivessem.
Destacamos, nesse sentido, a relação de amizade e amor entre os dois irmãos, Sydney e Charles, pois se consideramos que havia em Chaplin essa capacidade de resiliência, por outro lado há um fator, chamado nas ciências sociais de fator protetor, entre o sujeito resiliente e uma pessoa significativa (Silveira & Mahfoud cita Canelas, 2004; Galende, 2004; Kotliarenco & Lecannelier, 2004; Melilo, 2004a), nesse caso o forte apego, resultou no fortalecimento da resiliência em Charlie Chaplin.
Os estudos científicos a respeito da resiliência demonstram que esta não é um atributo físico ou de personalidade, mas sim algo que é desenvolvido a partir da relação do indivíduo e a sociedade, não isolando esses dois elementos. Sua dinâmica forma-se sempre com a presença de um ser humano, que apoie e dê suporte ao outro. (Infante, 2002). No caso de Charlie e Sydney, a relação íntima e de cumplicidade foi essencial para ser uma força motivadora na vida de ambos. Silveira e Malfoud (2008, p. 569) citam Cuestas, Estamatti e Melillo (2002, p. 86) ao afirmarem que as definições de resiliência enfatizam os seguintes fatores protetores do resiliente: “adaptabilidade, baixa suscetibilidade, enfrentamento efetivo, capacidade, resistência à destruição, condutas vitais positivas, temperamento especial e habilidades cognitivas”.
Sydney, o irmão mais velho, foi o responsável em levar Chaplin ao mundo artístico. Bastante esperto, vivaz e despachado, após ter trabalhado em diversas atividades (foi mineiro, mensageiro, telégrafo, etc), se envolve profissionalmente no teatro, área que pouco importava para Charlie, inicialmente.
Foi por intermédio do irmão, que Charlie começou a trabalhar na companhia de teatro de Fred Karno, em Londres. É importantíssimo citarmos esse fato, dado que, foi através de uma turnê com a Companhia Karno, nos Estados Unidos, que Chaplin tem contato com Mark Sennet, o primeiro diretor de cinema que o contrata para trabalhar, fazendo filmes. Na América, a vida de Chaplin iria mudar drasticamente.

DA MISÉRIA AO SUCESSO EM HOLLYWOOD

Apresentamos uma breve introdução acerca da infância de Charles Chaplin, vivenciada na Londres vitoriana, onde a pobreza se fez presente em boa parte dela, para evidenciar que a sua capacidade de resiliência é desenvolvida na medida em que este vai amadurecendo enquanto pessoa. Muito destas experiências irão acompanhar a vida do Charles adulto, já nos Estados Unidos e o que ele fez com essas lembranças é o que contribuiu para a trajetória da sua vida pessoal e de sua carreira.
Segundo Galende (2004) o sujeito resiliente é um sujeito crítico de sua situação existencial. Enfrentar as lembranças tristes e traduzi-las em risos foi uma das maiores contribuições realizadas por Charles Chaplin, ao utilizar um importante instrumento de entretenimento de massa como o cinema. O humor, tão importante para a Logoterapia, por traduzir a capacidade eminentemente humana de autodistanciar-se, foi abordado por Frankl como forma de “distanciar-se não apenas de uma situação, mas de si mesmo” (Frankl, 2011, p.27)
Para Frankl (2011) o que importa não são os condicionantes psicológicos, ou os instintos por si mesmos, mas, sim, a atitude que tomamos diante deles. É a capacidade de posicionar-se dessa maneira que faz de nós seres humanos. Chaplin se expressou muito claramente através da sua arte, mediante sua capacidade criativa. O cinema o possibilitou registrar sua visão de mundo de uma forma especial, que só essa ferramenta de entretenimento de massa consegue alcançar.
No início de seu contato com o cinema, Chaplin pouco se envolveu na construção das histórias. Na medida em que ganhava experiência e maturidade e, principalmente autonomia para criar, começou a desenvolver roteiros baseados na sua vida em Londres, contando com personagens que simbolizaram muitos sujeitos que fizeram parte da sua vida. Em 1914, quando realizou seu segundo filme para a Keystone, uma companhia de cinema, cujo diretor era Mack Sennett, Chaplin criou o personagem que o faria famoso por todo o mundo. Era chamado de Vagabundo (The Tramp, em inglês) e foi encenado em boa parte dos seus mais de oitenta filmes:

Eu não tinha a menor idéia sobre a caracterização que iria usar. Mas não tinha gostado da que apresentara como repórter. Contudo, a caminho do guarda-roupa, pensei em usar umas calças bem largas, estilo balão, sapatos enormes, um casaquinho bem apertado e um chapéu-coco pequenino, além de uma bengalinha. Queria que tudo estivesse em contradição: as caças fofas com o casaco justo, os sapatões com o chapeuzinho. Estava indeciso sobre se devia parecer velho ou moço, mas lembrei-me de que Sennett esperava que eu fosse mais idoso e, por isso, adicionei ao tipo um pequeno bigode, que, pensei, aumentaria a idade sem prejudicar a mobilidade da minha expressão fisionômica. Não tinha nenhuma idéia, igualmente, sobre a psicologia do personagem. Mas, no momento em que assim me vesti, as roupas e a caracterização me fizeram compreender a espécie de pessoa que ele era. Comecei a conhecê-lo e, no momento em que entrei no palco de filmagem, ele já havia nascido. (CHAPLIN, 1964, p. 178-179)

O personagem Vagabundo trata-se de um sujeito pobre, que faz de tudo para parecer cavalheiro. Ele demonstra um refinamento encantador, mas não se constrange em pegar uma bituca de cigarro que acha no chão. Seu objetivo é sobreviver, mas sempre há algum policial que lhe persegue, porque na maioria das vezes ele se envolve em alguma cena em que sua presença é indesejável ou recebe a culpa pelo que não fez. Outro elemento comum é a presença de uma bela jovem, que mexe com o coração do pequeno personagem, despertando o que há de mais sublime em termos de sentimento: o amor. E, em suas histórias, é o amor que lhe redime, que lhe proporciona encontrar um sentido.
Muitas vezes o vagabundo é apresentado como um ser solitário, sem trabalho e sem rumo. Ao encontrar a bela jovem, geralmente em situação de risco, ele é impelido a ajuda-la, encontrando assim, um objetivo para que viver, pois se importa menos pelos seus próprios problemas, em prol do outro.
Num curta chamado “O Imigrante”, realizado nos estúdios da Mutual Filmes, em 1917, Chaplin vive o papel de um imigrante inglês (uma autobiografia) que parte para os Estados Unidos em busca de uma vida melhor. A história é contada em grande parte dentro do navio, onde as condições de vida são precárias. As pessoas enjoam, parecem doentes, mas a imagem do Carlitos é sempre de bom humor. Ele então encontra uma jovem, que parece triste e conta-lhe que sua mãe tem uma doença séria. Tendo ele ganhado alguns trocados no jogo, sub-repticiamente coloca o dinheiro no bolso da moça, para ajuda-la sem ser identificado.
Esses pequenos gestos, apenas gestos sem fala, muito dizem da personalidade deste personagem, que vê na compaixão e na solidariedade, um sentido para sua vida. Na medida em que o personagem vai ganhando fama e notoriedade, Chaplin o aperfeiçoa. Se nos primeiros momentos ele parece gostar de confusão e até algumas vezes cometer uns pequenos delitos, posteriormente vai ganhando feições de inocência, uma pequena criatura com o coração de um gigante.
Em Luzes da Cidade (City Lights, 1931) ele não mede esforços para ajudar uma garota florista, cega, a realizar sua cirurgia e voltar a enxergar, nem que ele trabalhe duro para isso e que não tenha o reconhecimento desta. Nesta fase, vemos que o vagabundo demonstra possuir uma forte capacidade de autotranscedência, que segundo Frankl (2000), significa que o homem seja só ele mesmo e, justamente, tanto mais homem será, quanto mais se deixe para trás, a serviço de algo, da consecução de seu sentido, consagrando-se a um dever ou a uma pessoa. A autotranscedência, segundo Frankl, é uma capacidade especificamente humana. É a faculdade de ir além de nós mesmos, em direção a outras pessoas para amar ou a causas pelas quais lutar. (FABRY, 1990).(Figura 2)


“Tempos Modernos” (1936), em que seu início é apresentado com uma mensagem inicial: “Uma história sobre a indústria, a iniciativa privada e a humanidade em busca de felicidade”. O personagem de Chaplin trabalha em uma grande indústria, com máquinas gigantescas que parecem ameaçadoras a ponto de engolir seus funcionários. O barulho das engrenagens e o rígido modo de produção fordista/taylorista, que passou a chamar a atenção de Charles Chaplin para o mundo mecanizado, o fez produzir a sensação de prisão e alienação dos funcionários da indústria, representada no filme, se apresentavam. (Figura 3)


A preocupação de Chaplin perpassava pela própria questão da humanidade, dissolvida na entrega total ao materialismo provindo do capitalismo. A intensa busca dos patrões pelo lucro, a exigência cada vez maior pelo aumento da produção, a falta de liberdade, a busca incessante da felicidade pelo trabalho, somandose a vários fatores, fazem o personagem Carlitos, em “Tempos Modernos”, sofrer um surto, até ser engolido pela máquina, literalmente. Ao passo que o protagonista passa por uma série de situações complicadas, como a prisão injusta, a peregrinação pelas ruas da cidade, em busca de algo, um trabalho ou apenas comida, numa demonstração clara pela necessidade de sobrevivência, ele conhece uma bela garota órfã, a qual se apaixona.
É através da influência da pessoa amada que Carlitos decide por uma mudança de atitude, pois fará de tudo para amá- la e protege-la. Há, então, uma cena bastante representativa, onde Chaplin está sentado em uma calçada, junto à moça, e começa a sonhar uma vida ao lado desta, numa casa confortável e limpa, em que ele toma seu café da manhã ao lado da sua amada, para ir ao seu trabalho. Ao voltar à realidade, eles buscam apoio um no outro e quando ela pensa em desistir, acompanhamos um momento típico do vagabundo que luta até o fim, sem jamais desistir: A cena final é introduzida por uma legenda, escrita “NA AURORA”, Então a garota diz: - Para que tentar? Ao que o Vagabundo lhe responde: -Levante a cabeça, nunca desista! Vamos conseguir nos virar! Eles, então, de mãos dadas, ao som de “Smile” – composição musical do próprio Chaplin – caminham por uma estrada reta, quando o vagabundo olha para ela e diz: “Sorria!” (Figura 4)


A obra chapliniana por si só nos revela essa capacidade de seu protagonista em transcender, refletindo na visão do homem que o próprio autor/ator transparece. A percepção da vida pelo prisma do humor é um forte aliado no caminho em busca do sentido. O humor tornou-se uma marca evidente na forma em que Chaplin compôs sua obra, que não se reduz apenas ao riso, estando presente, portanto, humor e tragédia, como uma forma de abordar de forma positiva, até os momentos mais difíceis da vida (da sua própria vida, inclusive).

AÇÕES RESILIENTES

Acevedo (2008, p. 67) descreve a resiliência como

La capacidad de afrontar el sufrimiento, reconstruir-se y no perder la capacidad de amar, de luchar, de resistir, buscar, no es una destreza que hay que dominar, sino una realidad que hay de descobrir, que hay que desplegar. Es más que resistir, es aprender a vivir, es buscar el sentido.
As ações resilientes são as respostas às perguntas dramáticas que a vida nos coloca (Acevedo, 2002, p.42). Ele elenca doze ações resilientes: A busca de sentido, o humor, a introspecção, o autodistanciamento, a independência, a capacidade de relacionar-se, a afetividade, a autoestima, a qualidade de vínculos, a capacidade valorativa, a iniciativa, a criatividade. Essas ações são interdependentes, ou seja, para se alcançar uma não é obrigatoriamente necessário ter atingido outra. Ele cita o exemplo de vida de Viktor Frankl, ao também ter passado por momentos de extrema dificuldade nos campos de concentração nazistas e “se constituyóen un ser humano extraordinário, que desarrolló un cambio paradigmático y lo validó com su vida y em su muerte” (Acevedo, 2002, p. 25).
É difícil afirmar como seria a vida de Charles Chaplin sem seus filmes, pois personagem e artista muitas vezes se confundem (ou se convergem). O que percebemos é uma especial capacidade de criar histórias marcantes, eternizadas numa obra que tornou-se uma espécie de patrimônio da humanidade, evidenciando o homem que cria, que vivencia e que toma uma posição diante das situações difíceis da vida, o que nos remete as três categorias de valores, anunciadas por Frankl na Logoteoria.

OS VALORES NA LOGOTERAPIA

O homem, segundo Frankl (2011), sendo essencialmente espiritual, orienta-se, primariamente, para o significado e os valores. O homem é detentor de sua liberdade, com responsabilidade, para encontrar o sentido. Ele é livre para posicionar-se diante da sua vida, sendo possível avançar no caminho para o sentido.

La antropologia frankliana parte de esta idea de hombre: “el hombre es hijo de sus circunstancias pero no esclavo de ellas; es padre de su futuro”. Por lo tanto, el ser humano no sólo puedo soportar pasivamente, sino que tiene la posibilidad de participar activamente en su transformación y em la transformación del mundo circundante. (Acevedo, 2004, p. 27)

A busca do significado constitui busca de valores. Mais do que isso, o significado da própria existência é também o valor supremo de toda existência humana. (Peter, 1999).

Para Frankl:

A realidade sempre se apresenta na forma de uma particular situação concreta e, uma vez que cada situação de vida é irrepetível, segue-se que o sentido de uma dada situação é único. Não haveria então, possibilidade alguma de os sentidos serem transmitidos pela tradição. Somente os valores – que poderiam ser definidos como significados universais – podem sofrer a influência do declínio das tradições (Frankl, 2005, p. 31).
Os valores são uma manifestação da espiritualidade, da dimensão noética e fortalecem o espiritual, garantindo o processo de resiliência. Os valores são possibilidades gerais de sentido (Freitas, 2013) sendo cada valor singular e único, no qual cada pessoa, individualmente, é livre para descobri-lo.
Viktor Frankl (2011) elencou três categorias de valores: os criativos, os vivenciais e os atitudinais. A vida nos proporciona uma infinidade de possibilidades de encontrar o sentido, mesmo quando, aparentemente, não é possível enxergalo, principalmente numa situação de dor e sofrimento. Criar algo, através do trabalho, deixar um legado positivo para aqueles que nos cercam e seus descendentes, é uma forma de realização de sentido.
A primeira possibilidade de sentido é realizando um trabalho ou criando uma obra nos quais se imprime o caráter de algo único e irrepetível do homem, nos quais se revela o estilo de cada pessoa, seu modo de ser e fazer, ao que Frankl chamou de valores criativos. (Freitas, 2013, p. 62)
Frankl (1989, p. 81) ressalta que o importante a ser considerado é muito mais o modo da realização da obra em si, do que a profissão, o cargo ou a grandeza da abrangência do seu trabalho. Considerando essa primeira categoria de valores, compreendemos que a atitude resiliente de Chaplin, ao transformar situações que o incomodavam, em filmes de comédia, onde prevalecia o riso e uma forte mensagem de positividade diante do caos, nos sugestiona pensar uma considerável capacidade em produzir valores criativos que este desenvolveu, ao longo de sua trajetória.
Foram nos momentos mais difíceis da vida pessoal de Charles Chaplin que ele produziu seus melhores filmes, os que tiveram mais notoriedade e que eram constituídos de enredos mais elaborados e cheios de humor.
Na primeira categoria de valores, os criativos, refere-se ao que recebemos e aproveitamos do mundo. Nessa segunda categoria de valores a que Viktor Frankl se refere, os valores vivenciais, são evidenciados a contemplação do belo (o sorriso de uma criança, a beleza da natureza, da arte, da conversa com alguém que amamos, da demonstração de carinho da família e amigos, etc.).
Segundo Frankl (1992, p. 32) “Os valores vivenciais são importantes sob vários aspectos. Por meio deles experimentamos a beleza fundamental da vida e conservamos nossas forças espirituais, com a ajuda das quais podemos dar sentido à nossa vida em outras áreas”. Vivenciar a lembrança de momentos especiais e que nos fizeram felizes no passado, ou experimentar o amor por outra pessoa nos fazem enxergar a vida de forma mais significativa.
A Arte é um sentimento difícil de ser definido. O seu tema, por mais importante e grandioso que seja, pode sempre ser simplificado ao ponto de ser compreensível por todas as pessoas. É aí então que a Arte atinge a sua forma mais sublime (Chaplin, 1964, p. 69).
Quando não é possível a realização dos valores criativos e vivenciais, ainda que sejam as piores condições, onde haja dor e sofrimento diante de situações inevitáveis, o homem pode se posicionar, a partir de uma tomada de decisão e de uma atitude, já que o sofrimento sem sentido gera desespero.
Para Frankl: (...) a experiência mais nobre do sentido se reserva àquelas pessoas que, privadas da possibilidade do trabalho ou do amor, escolhem livremente uma atitude afirmativa da vida, erguendo-se sobre si mesmas e crescendo para além de si. O que importa, nesse caso, é a postura que se decide ter, a atitude que permite, heroicamente, transformar a miséria de um sofrimento inevitável numa conquista, num triunfo. (Frankl, 2011, p. 90)
É graças à capacidade de autodistanciamento, que o homem pode posicionar-se diante do destino apresentado como imutável. Para Viktor Frankl (2011), a vida é considerada como um universo de possibilidades, sendo possível encontrar sentido em quaisquer circunstâncias, especialmente ante o sofrimento, a culpa e a morte (tríade trágica). Chaplin, portanto, ao elaborar seus roteiros, tinha uma ideia bastante consciente do que estava propondo e para qual público direcionava sua arte. Essa observação se confirma ao analisarmos um trecho de sua autobiografia, escrita na década de 1960, onde ele escreve:
Não tentarei descer aos abismos da psicanálise para explicar o comportamento humano, que é tão inexplicável quanto a própria vida. (...) no humorismo vemos o irracional nas coisas que parecem racionais e o que não é importante nas coisas que parecem importantes. Isso também acentuo o nosso sentido de sobrevivência e preserva a nossa sanidade. Porque o humorismo nos alivia das vicissitudes da vida, ativando o nosso senso de proporção e nos revelando que a seriedade exagerada tende ao absurdo. (Chaplin, 2011, p. 253)
Em sua autobiografia, Chaplin ressalta alguns momentos particularmente dolorosos para ele, como o que ocorrera em 1928, enquanto gravava o filme “O Circo”, quando recebera um comunicado de que sua mãe havia sido internada. No dia seguinte, recebera novo recado, desta vez avisando do falecimento. Ele descreve o momento de dor:

(…) Entrei no quarto e sentei-me numa cadeira entre a janela e o leito. As persianas estavam semicerradas. Lá fora, o sol intenso; no quarto, a intensa mudez. Sentei-me e pus-me a fitar a pequena figura na cama, o rosto inclinado para trás, os olhos cerrados.
(…) Quão estranho que a sua vida viesse acabar aqui, nos arredores de Hollywood, com todos os seus absurdos valores – a quase doze mil quilômetros de Lambeth, lá onde se despedaçara o seu coração. E desabou sobre mim todo um mundo de lembrança, a luta incessante que enfrentara, as provações que sofrera, a sua intrepidez e a sua trágica existência desperdiçada… E chorei. (Chaplin, 2011, p. 336)
Diante de tantos problemas, que acarretaram num cansaço físico e psicológico, Chaplin teve uma crise nervosa no intervalo das gravações. Mas os problemas não iriam parar por aí. Poucos dias após a triste notícia da morte da sua mãe, foi surpreendido por um incêndio, que tomou todo o estúdio de gravações, prejudicando as filmagens de “O Circo”. Além disso, enfrentava um duro processo de divórcio, onde estava sendo ameaçado de ter os negativos, já filmados, confiscados pelo advogado da sua ex-esposa.
Que resposta Chaplin deu à sua vida, num momento verdadeiramente difícil e doloroso da sua vida pessoal e da sua carreira?
Ele não apenas concluiu as filmagens de “O Circo”, como o tornou um dos filmes mais cômicos da sua carreira. Chaplin, portanto, se posicionou e verdadeiramente encontrou um sentido no sofrimento, não sendo a questão de negar a realidade, mas de se tomar atitudes significativas diante dela. A logoterapia postula que devemos evitar a dor, quando isso for possível (Frankl, 2011), entretanto, quando nos deparamos com um destino imutável, esse sofrimento deve ser transformado em algo significativo, numa conquista. Portanto, parece-nos que a experiência de Chaplin no momento de produção de “O Circo” representou na prática a teoria frankliana ao que se refere à questão dos valores.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As discussões que versam sobre o conceito de resiliência estão na ordem do dia. O termo, antes exclusivo às ciências exatas, para explicar eventos de ordem material, vem sendo estudado pelas ciências humanas, onde inclui-se a Psicologia, no que tange a observação dos fenômenos essencialmente humanos.
As pesquisas sobre resiliência, segundo Acevedo (2002), têm-se modificado em relação à forma em que se percebe o ser humano, de um modelo de risco, baseado nas necessidades e na doença, para um modelo de prevenção e promoção baseado nas potencialidades e nos recursos que o ser humano tem em si mesmo e ao seu alcance.
O presente artigo buscou contribuir para as discussões em torno da resiliência à luz da Logoterapia, evidenciando a concepção de homem proposta pela análise existencial, onde considera-se tal como um ser bio-psicoespiritual, sendo a resiliência manifestada na dimensão espiritual ou noética. Para corroborar com a proposta, foi utilizada a biografia de um dos artistas mais importantes para o cinema mudo (e falado, também), o inglês Charles Chaplin, tendo ele passado por experiências tristes e dolorosas ao longo da vida e que, no entanto, ressignificou esses momentos em uma vasta obra, onde prevalece o humor e uma visão positiva da existência humana.
Por se tratar de um conceito relativamente novo que é a resiliência, levandose em consideração o processo histórico de estudos em que a psicologia vem desenvolvendo, intencionamos despertar o interesse em se buscar avançar nessa proposta, sobretudo suscitando a leitura do recurso biográfico como formas de se por em evidência a capacidade humana de vencer a tragédia.
O uso da biografia, ao que pesa a análise da vida de um personagem icônico para a sétima arte, como o foi Charles Chaplin e realizando uma análise desse material na perspectiva de casos clínicos, demonstra a veracidade das afirmações teóricas propostas pela Logoterapia, na prática e na vida cotidiana, com revalidação constante de seus pressupostos teóricos. 

REFERÊNCIAS

Filmes
Chaplin, C. (1917) O Imigrante. [Filme-vídeo]. Direção de Charles Chaplin. EUA, Mutual Films, 1917. DVD. Preto e Branco, 20 minutos, mudo.
Chaplin, C. (1931) Luzes da Cidade. [filme-vídeo]. Direção de Charles Chaplin. EUA, United Artists. DVD. Preto e Branco, 87 minutos, mudo.
Chaplin C. (1936) Tempos Modernos. [Filme-vídeo]. Direção de Charles Chaplin. EUA, United Artists. DVD. Preto e Branco, 87 minutos, mudo.

Livros
Acevedo, G. & Battafarano, M. (2008). Consciencia e Resiliencia. Argentina: Centro Viktor Frankl para la difusión de la Logoterapia.
Acevedo, G. (2004). El Modo Humano de Enfermar. Desde la perspectiva de la Logoterapia de Viktor Frankl. Argentina: Centro Viktor Frankl para la difusión de la Logoterapia.
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Site
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